segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

SOBRE SEBASTIÃO DA GAMA

(Publicado na página Triplov, em: http://www.triplov.com/poesia/ruy_ventura/2008/Sebastiao-da-Gama/index.htm)



Ruy Belo – um dos autores que melhor entendeu a poesia de Sebastião da Gama, em textos tão significativos quanto o prefácio de Pelo sonho é que vamos ou o ensaio publicado em 1969 no seu livro Na Senda da Poesia – não gostava que a apreciação do autor de Serra-Mãe se ficasse pela atribuição do título de “Poeta da Arrábida”. Considerando-o, tal como muitos outros ensaístas, um “poeta integral”, não podia vê-lo confinado a uma poesia localizada. Afigurava-se-lhe “pelo menos desorientador chamar a Sebastião da Gama o poeta da Arrábida e, não contente com isso, esfregar as mãos de alegria, como quem já disse tudo”. Embora considerasse que “A localização de um poeta no espaço é um elemento de interpretação da sua poesia”, não deixava no entanto de verificar os perigos desse veículo de entendimento, que bem se pode tornar num “obstáculo para a sua compreensão.” Para o autor de Aquele Grande Rio Eufrates, se “Ver um poema é como ver um rosto. [...] Podemos saber que é belo, mas não sabemos porquê”, então “A localização de um poeta na sua paisagem servirá para ver essa paisagem. Não ao contrário.”



Ruy Belo concordava decerto com um dos pensamentos de Pascal, esse filósofo tão caro a Sebastião da Gama: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. [...] pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu”.



Pela mesma razão, apesar de podermos referir com justiça a ligação de Teixeira de Pascoaes à Serra do Marão, de Francisco Bugalho ao Alto Alentejo ou de Fernando Pessoa a Lisboa, nunca poderemos fazer depender disso a sua posição central na vasta cidade da Poesia. A grandeza de uma obra literária não depende do espaço nem sequer da matéria, mas da maneira como conseguiram transfigurar, através da Arte com que trabalharam as palavras, o universo que os rodeou durante as décadas em que existiram sobre a terra. Porque, como registou o escritor de Amarante no seu onírico São Paulo, “A beleza das coisas não é inerte; insinua-se, em nós, como um segredo, e pretende assenhorear-se do lugar. Conquista-o e transfigura tudo, em volta dela. Derrama-se como a luz na sombra”, permitindo ao ser humano esse transporte que o torna ser luminoso, o transporte que eleva o Homem de uma mera existência natural, instintiva, animal, até à liberdade e imortalidade da verdadeira vida.



E contudo, apesar de tudo isto, nenhum de nós poderá negar a Sebastião da Gama o título de “Poeta da Arrábida”, embora me pareça cada vez mais justo pensarmos seriamente em invertermos as palavras, modificando a toponímia até chegarmos ao ponto de chamarmos àquelas montanhas debruçadas sobre o Sado e o Atlântico a “Arrábida dos Poetas” – juntando assim à memória, mais recente, de Sebastião a de outro importantíssimo autor da poesia de todos os tempos, Frei Agostinho da Cruz, permanente referência do escritor de Campo Aberto a precisar de uma homenagem condigna.



Como muitos saberão (e nunca será fastidioso repetir, tanto mais que terá sido esse o motivo principal que levou a Câmara Municipal de Setúbal a colocar no aniversário natalício do poeta de Azeitão o “Dia Municipal da Arrábida”, que hoje comemoramos), foi Sebastião da Gama um dos primeiros cidadãos – se não mesmo o primeiro – a alertar o país para a importância do património natural contido na sua Serra-Mãe, não olhando a meios para lutar em prol da sua defesa e preservação. A Luiz Forjaz Trigueiros, director do extinto Diário Popular, escreveu uma carta reveladora:



[...] como Amigo da paisagem, depois como Poeta (é a primeira vez que invoco a missão, mas assim é necessário), [...] venho pedir hoje a sua ajuda para um caso urgente. Trata-se, nada mais nada menos, de o facto de estar sendo destruída a Mata do Solitário [...] sendo, até metade, propriedade do senhor José Júlio da Costa, entende ele que tem por isso o direito de convertê-la em lenha. Eu entendo que não. Eu e toda a gente de aqui. Eu e o senhor. Eu e todos que se não contentam com os prazeres do estômago. / Conto consigo para defender a causa do Solitário, que é também de Herculano e de Frei Agostinho.”



Um bilhete dirigido ao engenheiro Miguel Neves é ainda mais revelador da postura ética de Sebastião da Gama, na defesa da prevalência do bem comum sobre a satisfação dos desejos individuais ou dos instintos da ganância e do lucro:



Socorro! Socorro! Socorro! O José Júlio da Costa começou (e vai já adiantada) a destruição da metade da mata do Solitário que lhe pertence. Peço-lhe que trate imediatamente. Se fôr necessário, restaure-se a pena de morte. SOCORRO!”



(As palavras do poeta, escritas em 1947, interpelam-nos. Apesar do seu grito – que serviu de alavanca a Carlos Baeta Neves, professor no Instituto Português de Agronomia, para a criação em 1948 da Liga para a Protecção da Natureza – continuam, infelizmente, a ser necessárias um pouco por todo este “país desgraçado” que se auto-devora e, especialmente, na sua Serra da Arrábida, que não conseguiu ainda livrar-se desses outros Costas que a mutilam todos os dias a tiros de dinamite. A vegetação tem mecanismos naturais que permitem uma, ainda assim lenta, regeneração. O calcário, infelizmente, nunca mais voltará ao lugar...).



Sebastião, “poeta integral” e cristão assumido que não dispensava uma ética de responsabilidade em todos os momentos da sua vida, escreve – e com razão – num poema de Itinerário Paralelo intitulado “Mordaça”:



Puseram-lhe na boca uma mordaça...






Mas o Poeta era Poeta


e tinha que falar.






Fez um esforço enorme,


puxou a voz como quem golfa sangue,


e a mordaça soltou-se-lhe da boca.






Porém, não era já mordaça:






– Agora,


era um poema a queimar


os ouvidos das turbas inimigas


que, na praça,


o tinham querido calar.



Não sendo abundantes, não são raros os textos em que Sebastião da Gama deixa emergir da sua obra uma figura de cidadão comprometido. Sem ter sido nunca um “poeta social” ou um “escritor engagé” (no sentido mais restrito destas expressões), considerava-se obrigado ao uso público da palavra, ao testemunho, na medida em que Poeta e Cidadão são duas faces do mesmo ser bifronte, inseparáveis num ser humano que aceitou a missão de construir pontes entre todas as dimensões da Vida e até da Existência, entre todos os seres que habitam o Universo, entre esses homens e mulheres e o Mundo que os rodeia. “[...] [S]ó se é Poeta na medida em que se é homem, que o mínimo acto do homem-Poeta, o mais prosaico, o mais comezinho, o mais grosseiro, o mais em desacordo com o seu ideal, é tanto a massa da sua poesia como o seu voo mais arrebatado”, escreveu ele na sua tese de licenciatura.



O poeta – quando o é de verdade – é sempre um instrumento de religação, logo um ser ético. Sebastião – autor de um dos mais lúcidos ensaios que conheço sobre a chamada “Poesia Social”, um texto humilde que conseguiu suplantar os constrangimentos de Academia, a que se submeteu, para se elevar enquanto colóquio inteligente e criativo – sabia, contudo, que os termos nem sempre se confundem, que o contrário nem sempre se verifica:



A indignação activa contra as injustiças da sociedade, o carinho pelos oprimidos, qualquer homem de bem os pode ter; mas isso não é suficiente para ser Poeta; isso, que num homem qualquer é tudo, é no Poeta só um pretexto. [...] Um legítimo Poeta que não tenha escrito senão contra as injustiças sociais seria um Poeta na mesma se não existissem essas injustiças, Então, seriam outros os temas; outros os pretextos.”



As suas palavras referiam-se, sobretudo, aos poetas portugueses de oitocentos – Herculano, Garrett, Junqueiro, Gomes Leal, Cesário... –, autores daquilo a que chama, com justiça, “Poesia Social”. Nas veias do seu pensamento corria no entanto o sangue mais universal das ideias defendidas pelos directores da revista presença, principalmente José Régio, defensores intransigentes da liberdade inteira dos criadores contra a submissão da Arte a ditames político-sociais, por mais justos que parecessem. As considerações tecidas por Sebastião da Gama não perderam ainda actualidade. Com ele, devemos continuar a defender – nesta época em que um neo-naturalismo militante procura que todos escrevam e leiam pela mesma cartilha – que “a nobreza da Poesia [...] está [...] nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que se está”. Como referiu num esboço de ensaio sobre António Sardinha, incluído por Matilde Rosa Araújo em O Segredo é Amar, “não há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há acontecimentos, há coisas – e há poetas em face de tudo isso”.



O autor de Serra-Mãe, é bom sublinhar, não rejeitava a “poesia social”, como não recusava qualquer forma de expressão poética que se instituísse enquanto Arte em Liberdade ao serviço da comunicação entre os seres humanos. Aí reside também a sua postura ética. Sabia distinguir num poema, como leitor clarividente, as suas diferentes dimensões: de um lado o seu valor humano, que em geral conduz a uma maior realização comunicativa; do outro, o seu valor poético, artístico. Um poema escrito em linguagem obscura poderá conduzir, na sua opinião, a uma maior dificuldade no entendimento imediato, mas isso não significa para Sebastião da Gama que a Poesia (ou seja, a Beleza) não permaneça lá, “inviolada, esperando a vinda dos que a descubram”. Segundo escreveu, “O seu valor humano será menor e terá, por conseqüência, uma realização limitada. Mas isso não impede que o seu valor absoluto se não melindre.”



Um dos poemas mais interessantes do escritor cuja memória hoje nos reúne é, quanto a mim, o que vem em quarto lugar no livro póstumo intitulado Pelo Sonho é que Vamos. Escrito em Estremoz no dia 10 de Fevereiro de 1951, um ano antes do falecimento de Sebastião, mostra bem quanto era consciente o seu entendimento do fazer poético, quanto percebia que a poesia é apenas expressão do sentimento e das emoções, veículo de pensamento, concretização dos instantes fugazes, único e imperfeito instrumento de conservação de fragmentos de um mundo sempre a perder-se, vítima constante das múltiplas erosões que o atacam sem cessar. “Viesses tu, Poesia...”:



Viesses tu, Poesia,


e o mais estava certo.


Viesses no deserto,


viesses na tristeza,


viesses com a Morte...






Que alegria mereço, ou que pomar,


se os não justificar,


Poesia,


a tua vara mágica?






Bem sei: antes de ti foi a Mulher,


foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...


Mas tu é que disseste e os apontaste:


– Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.


E logo foram graça, aparição, presença,


sinal...






(Sem ti, sem ti que fora


das rosas?


Mortas, mortas pra sempre na primeira,


morta à primeira hora.)






Ó Poesia!, viesses


na hora desolada


e regressara tudo


à graça do princípio...



Seja qual for a Arrábida que nos mova, as injustiças que nos façam escrever, as paisagens que nos encantem, as figuras que nos interpelem, os sonhos e imagens que nos obriguem, os sentimentos que se estabeleçam, os pensamentos que queiram ver a luz da expressão – é preciso passarmos (parece sugerir Sebastião da Gama neste poema e noutros textos) da representação à apresentação do mundo e dos seus seres, da observação à investigação da realidade, da prospecção dos vestígios de um tempo e de um espaço fugidios e irrepetíveis à sua escavação e interpretação. Apresentar, investigar, escavar e interpretar serão sempre os verbos que moverão o trabalho poético de quem escreve porque não pode deixar de criar em Arte. “Transfiguração” é a palavra-chave. O poeta pergunta num dos seus parágrafos: “a Poesia – mesmo quando pretende ser realista e crua – não será sempre uma deformação da realidade no sentido da Beleza?” A resposta, que alumia, é ele quem a dá: “Pode a beleza que sugere não ser a beleza amável [...]; de toda a maneira é inegável essa deformação, que desvulgariza a coisa observada pelo Poeta, que lhe empresta um poder de comover ou lho descobre.



Cada um de nós tem presente um Sebastião da Gama que lhe é próximo. Haverá quem guarde sobretudo a sua memória de Homem e de Cidadão (onde se inclui o seu desempenho como professor), outros privilegiarão as suas intuições pedagógicas, um pequeno grupo lembrará o seu cristianismo alegre e esclarecido (com laivos da mística de São João da Cruz), muitos recordam sobretudo o poeta e, entre estes, existirão aqueles que valorizam sobretudo o valor humano dos seus textos, enquanto um número indeterminado de leitores realçará a qualidade artística dos seus poemas, sobretudo daqueles que o farão permanecer no futuro, conservando a solidez do seu lugar no vasto território da Poesia Portuguesa do século XX. Todas as facetas deste ser poliédrico, exemplar, merecem a nossa admiração. O que não significa que passemos à canonização; a pior coisa que pode suceder a um escritor intenso como ele é não ser discutido, não ser constantemente avaliado nas suas atitudes e nas suas produções. Não tenhamos dúvidas: o futuro recordará Sebastião da Gama como Poeta, sobretudo como Poeta, mas isto não significa que uma devoção acrítica nos impeça de ver que a sua poesia foi um ser em crescimento, em maturação.



Na sua justamente célebre “Alegoria”, o escritor sai de cena e apresenta-se enquanto figura que finge “A dor que deveras sente”. Vale a pena recordar na totalidade um dos seus mais emocionantes poemas:



Junto do Mar canta a Cigarra.










Canta, p’ra iludir














a fome e a solidão;


p’ra fingir que tem pão


e p’ra fingir que está acompanhada.






Tremeluzem os Astros no céu nítido:


Dona Cigarra faz serão.


Como há-de ela dormir, se a vida é curta?






: Cigarra que se preza, quando morre


não deve estar a meio da canção.






Ninguém pára a saber por que é que canta.


Ninguém lhe dá ouvidos nem conforto.


Melhor, assim: assim, não perde tempo


quem não pode cantar depois de morto.






A parte que lhe coube por destino,


tem de morrer deixando-a já cantada.


Que faz que a não escutem nem lhe acudam?


É preciso é sentir que se está vivo.


É preciso é que as asas que sosseguem


o tenham merecido.






Canta a Cigarra à sombra da montanha


e à sua voz a solidão alastra,


deixa-a mais longe, sempre, dos que dormem.


Só a noite a entende e agasalha.


Mas a voz não acusa nem se cansa


nem laiva de azedume ou amargura.






Ei-la crucificada de indiferença.


Serve-lhe a Noite de mortalha.


Morno ainda do Canto,


seu coração evola-se em ternura


que vai poisar no sonho dos que dormem...



Com Ruy Belo iniciei estas palavras, com Ruy Belo as termino. Se concordo com ele quando afirma que Sebastião da Gama “vinha melhorando surpreendentemente de livro para livro”, não sei até que ponto ficou “a meio da canção” (na medida em que uma parte substancial da sua obra em prosa e em verso ainda permanece inédita). Há no entanto uma convicção que partilho com o autor de Terra da Alegria:



[...] não é que não tenha interesse a biografia, mas o que inequivocamente tem primordial importância são os textos, os positivos textos. Só de quem foi poeta na obra interessará saber se foi poeta na vida. [...] De resto o poeta sabia que assim era e desejava que da sua obra falassem ‘objectivamente, friamente’.”



Convosco partilharei a certeza de que Sebastião da Gama foi poeta na vida e na obra. Por isso aqui estamos. Por isso assumimos como dever preservar e divulgar, num olhar claro, todos as faces da sua memória.




[Lido no dia 10 de Abril de 2008 no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal.]
UMA DESNECESSIDADE ORTOGRÁFICA

(Publicado na página Triplov, em: http://www.triplov.com/historia/Debate-acordo/Ruy-Ventura.html)



A reforma ortográfica que, em breve, será posta em prática nos países que falam a língua portuguesa nas suas múltiplas variantes é, quanto a mim, uma desnecessidade e um desperdício de energias.



Ao contrário do que defendem os advogados deste acordo político, o que divide as diversas variantes da nossa língua materna não é, nem nunca foi, a ortografia. Nunca a grafia diferenciada impediu o entendimento dos escritos brasileiros em Portugal ou dos textos portugueses no Brasil ou noutras partes. Temo-nos entendido até agora - e assim continuaríamos, mesmo que não nos impusessem este processo de simplificação (?) da escrita. Quem tenha mínima consciência das várias formas do português falado e escrito sabe que a separação entre elas acontece sobretudo ao nível da pronúncia, do vocabulário e da sintaxe. O que não constitui qualquer problema. É um sintoma de riqueza - que só mentes preguiçosas, amigas da facilidade militante que vai empobrecendo a nossa sociedade, podem rejeitar.



A reforma da ortografia não responde por isto a qualquer necessidade intrínseca. Não partiu de um movimento científico ou cultural de qualquer dos países constituintes da Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, mas da mente de alguns políticos e de alguns académicos especialmente preocupados em uniformizar o que nunca poderá ser uniforme e em submeter tudo às "leis do mercado".



Uma pergunta se impõe então no meu espírito. Se não existem neste "acordo" necessidades culturais ou científicas (e muito menos educativas, pois esta reforma pouco alterará no ensino do Português), que propósitos presidiram então à sua elaboração/aprovação? Um amigo meu lembrou-me há dias a frase de um romance policial: "Sigam o cheiro da massinha..." Assim será? Quem ganharia com isso? Entre dúvidas, uma certeza se me impõe: quem esteve/está por detrás disto será tudo, menos ingénuo.
São Paulo, de Pascoaes (alguns apontamentos)
(Publicado na página Triplov, em: http://www.triplov.com/poesia/ruy_ventura/2008/Sao-Paulo/index.htm)





São Paulo, de Teixeira de Pascoaes. Uma biografia onírica que, enquanto tal, vale muito mais como ensaio opinioso, cujas ideias merecem muita discussão. Nos entremeios, é legível um "protestantismo" anti-petríneo e anti-romano do autor. Atraentes as intuições filosóficas. Sublime a linguagem em que tudo é vertido.



Irrito-me sempre quando vejo factos documentados serem torcidos para servirem ideias preconcebidas. Mas reconcilio-me com Pascoaes quando reconheço a ousadia das suas concepções (mesmo quando não concordo com elas). No São Paulo, pseudobiografia ateoteísta, ou seja, um cripto-ensaio, há luzes que não podem esconder-se. (Despropositada me parece, contudo, a aceitação beata das suas intuições, sem as submeter a um escrutínio crítico, canonizando-as a elas e ao seu autor.)





As últimas acções serão sempre as mais lembradas. Neste livro também. Os dois últimos capítulos (o penúltimo, sobretudo) são memoráveis. Se a erupção de intuições saborosas atrai este leitor em todos os livros de Pascoaes, a sua capacidade como narrador ágil não pode deixar-lo indiferente.



Pascoaes é muito maior quando se universaliza.



Vai uma grande distância entre as biografias de Zweig e as de Pascoaes. Ambas ensaios e ambas registadas num escrita dinâmica e fervente, tudo o mais as separa. Se, para o português, os factos documentados são argolas onde uma corda ténue prende um barco sujeito às vagas do sonho, para o austríaco constituem pilares bem assentes a partir dos quais se eleva um edifício psicológico sólido e verosímil.
TRADUZIR UM POEMA É ESCREVER UM POEMA NOVO?
(Publicado no Arquivo de Renato Suttana, em: http://www.arquivors.com/ruyvent5.htm)



Posiciono-me perante a tradução de poesia na qualidade de leitor e nunca como tradutor profissional que viaja permanentemente entre duas línguas. Interessam-me sobretudo as emoções e as experiências que recebo de uma construção poética. Há alguns anos que venho vivendo a comoção de um viajante que vai chegando a uma infinidade de mundos novos sempre que abre um bom livro de poemas. Hoje como ontem, vou seguindo por um caminho de amor em direcção às palavras – fazendo, quando é necessário, o transporte material para levar ao outro lado da fronteira linguística um pouco de maravilha, de pensamento, de angústia ou de reflexão.

Quando observamos o mundo interior e exterior que rodeia o nosso corpo, quando escrevemos o calor e o encanto, o horror e o desespero que esse mundo cria em nós, quando tentamos transpor para outra língua um poema que nos comoveu, nada mais fazemos do que uma leitura múltipla e irrepetível. Decompomos e recompomos o universo peculiar que nos rodeia, para criar neste mundo onde temos que habitar um pouco de beleza, ainda que estranha, dionisíaca e nocturna, difícil de compreender e de integrar nos alicerces da casa que habitamos.

Traduzir um poema é escrever um poema novo? Não sei responder a esta pergunta. Ninguém saberá talvez responder. É difícil raciocinar quando o objecto sobre o qual nos debruçamos foge de nós como areia entre as mãos.

Vladimir Nabokov, escritor bilingue que, como Fernando Pessoa, conheceu na vida o trabalho cimeiro da leitura – a tradução permanente –, indica num texto seu que somente a tradução literal é genuína, uma vez que apenas ela transmite rigorosamente o significado contextual do original. Desta forma, o leitor que traduz um poema apenas consegue fazê-lo quando procura uma fidelidade crescente que deseja completa. Caminha ao encontro de outra entidade: uma entidade dupla, corporal e verbal, que recebe no seu coração e tenta transmitir ao mundo com a máxima integridade. O tradutor despersonaliza-se. O tradutor sofre uma lenta mutação das suas células, a metamorfose do seu corpo total – ao realizar uma viagem total para que chegue sem mancha ao outro o objecto que guarda nas suas mãos. Para procurar comover o leitor do texto traduzido, como supõe que o poema original terá comovido os seus leitores ou os contemporâneos de sua criação, ou como emocionou o leitor que traduz.

Será isto possível? As dúvidas permanecem no pensamento. Tenho sempre na memória a certeza de que todas as palavras têm cinco sentidos e algumas contêm mesmo o infinito, como refere o Zohar. Quem poderá garantir que uma tradução é fiel ao original? É tão difícil quanto dizer com segurança que a leitura literária de um poema é fiel ao pensamento de quem o escreveu. O verbo poético engana, mente para criar uma verdade em cada leitor, uma verdade provisória e mutável. Noutra língua, o poema original é apenas um simulacro. O corpo pode ter a mesma estrutura, uma pele semelhante, mas os olhos e o cabelo têm já uma cor e um odor diferentes, os órgãos vitais trabalham de forma distinta, a melodia que produz modificou-se de forma inexorável.

Tudo se passa, suponho, como na literatura oral e tradicional, onde um texto original vai criando múltiplas versões, árvores diferentes que crescem da mesma raiz. Não creio que um poema bem traduzido seja um poema novo, separado do original. Tenho a convicção de que é um simulacro, uma representação desejada mas nunca concluída do objecto original.
Uma leitura da poesia de Gérard Calandre
(Publicado em Julho/Agosto de 2007 nº. 58 da revista Agulha, em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag58calandre.htm)


Vestígios são caminhos. Traços mais ou menos visíveis, inscritos na terra ao longo do tempo, num espaço preciso.
Vestígios são fragmentos. Restos de um corpo disperso pelo vento. Um corpo que escreve, que se escreve, que se deixa escrever. Como a pedra – suporte, agente, matéria de escrita – que a erosão vai desgastando, dispersando, esculpindo.
Não nos esqueçamos: “Escrever é traçar linhas de fuga”, “Partir, evadir-se, é traçar uma linha. A linha de fuga é uma desterritorialização” (Deleuze & Parnet).
Depois do caminho percorrido, ficam apenas vestígios, indícios: pequenos objectos (ou fragmentos de um objecto) deixados perante as esquinas do espaço, a pequeníssima imagem da face dos segundos, o enorme vazio deixado no tempo interior pela ausência, “resíduos de amargura / dolorosa presença”.
Dos poemas de Gérard Calandre, escolho apenas dois, ou talvez três: aqueles que se fixam no olhar e na memória, como pontos luminosos, como utensílios cuja surpreendente presença perante a vista nos faz entender a inquietante voz da incerteza.
Flagstaff”, espaço e geografia do mistério, linha de sentido a meio caminho entre a música e a “obra dos tempos”. A obra como mistério, o mistério como palavra; a palavra como segredo; o mistério fotografado na voz, residente na construção do tempo. Tudo elementos que, pelo caminho, nos vão abrindo a porta. A porta que “esconde, mostra retoma”. É o mistério que nos constrói e, logo de seguida, nos desfaz, integrando, dentro das nossas estruturas, a dor, os limites do segredo, “Uma parede ao longe / branca e preta, preta // e branca”. A voz que se cala, porque só no silêncio, incorporando o indizível, revelará o seu corpo profundo, inteiro.
Vestígio. “Rasto”. Verbo, palavra com a substância da vereda, do carreiro traçado somente com os passos da noite e do dia. “Em Janeiro” (isto é, no princípio, nos alicerces da memória que o texto constrói como raiz) “somos fragmentos negros azuis / ocultos mundos cintilantes e tranquilos / Violentos, tranquilos. // Na superfície da terra”. O espaço e o tempo suspendem a continuação da caminhada; parado, o sujeito que se constitui na escrita, suspende-se, para assim melhor contemplar, contemplar-se, construção que se volatiliza, pois faz parte de um domínio particular, “o ano de verbos e ventos”. Vento e palavra, o movimento e a música. O som que “cumpre o olhar”. O vestígio cada vez mais ténue, fazendo desaparecer as imagens da memória.
A memória inscrita no texto, de que restam apenas “vestígios” que ele resguarda, é, como o corpo e o ser, uma memória em dissolução. Ligada ao espaço, muito mais do que ao tempo, desaparece, transforma-se em “linguagem secreta”, como no poema “Jitterbug”: “Perdi uma das casas / da minha infância”. O próprio texto, na elipse de algumas frases, reflecte o espaço interior deixado incompleto com a substituição: “Pombos por sobre as árvores / onde é agora um hipermercado”. A memória é inseparável da sua dimensão de morte, de imagem longínqua; luta contra o indistinto, substantiva o espaço e o ser, individualiza; partilha, no entanto, da dimensão flutuante dos fragmentos – “A mãe […] ausentou-se / […] / e a sua memória flutua” –, é ela própria uma reunião caótica de fragmentos, de vestígios.
Escrever é, por isto, nesta poesia, a consciência da fragmentação, da dissolução. Movimento de viagem, traçando a própria estrada da viagem, o conjunto dos poemas tenta nomear, reconstruir o mundo (a memória não existe sem expressão), escrevendo “dissonâncias”, “linhas interseccionando-se quebradas abatidas”, num lugar do texto, misterioso, secreto, em que “se contemplam substantivos”, a substância escrita da vida e do mundo.