segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Uma leitura da poesia de Gérard Calandre
(Publicado em Julho/Agosto de 2007 nº. 58 da revista Agulha, em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag58calandre.htm)


Vestígios são caminhos. Traços mais ou menos visíveis, inscritos na terra ao longo do tempo, num espaço preciso.
Vestígios são fragmentos. Restos de um corpo disperso pelo vento. Um corpo que escreve, que se escreve, que se deixa escrever. Como a pedra – suporte, agente, matéria de escrita – que a erosão vai desgastando, dispersando, esculpindo.
Não nos esqueçamos: “Escrever é traçar linhas de fuga”, “Partir, evadir-se, é traçar uma linha. A linha de fuga é uma desterritorialização” (Deleuze & Parnet).
Depois do caminho percorrido, ficam apenas vestígios, indícios: pequenos objectos (ou fragmentos de um objecto) deixados perante as esquinas do espaço, a pequeníssima imagem da face dos segundos, o enorme vazio deixado no tempo interior pela ausência, “resíduos de amargura / dolorosa presença”.
Dos poemas de Gérard Calandre, escolho apenas dois, ou talvez três: aqueles que se fixam no olhar e na memória, como pontos luminosos, como utensílios cuja surpreendente presença perante a vista nos faz entender a inquietante voz da incerteza.
Flagstaff”, espaço e geografia do mistério, linha de sentido a meio caminho entre a música e a “obra dos tempos”. A obra como mistério, o mistério como palavra; a palavra como segredo; o mistério fotografado na voz, residente na construção do tempo. Tudo elementos que, pelo caminho, nos vão abrindo a porta. A porta que “esconde, mostra retoma”. É o mistério que nos constrói e, logo de seguida, nos desfaz, integrando, dentro das nossas estruturas, a dor, os limites do segredo, “Uma parede ao longe / branca e preta, preta // e branca”. A voz que se cala, porque só no silêncio, incorporando o indizível, revelará o seu corpo profundo, inteiro.
Vestígio. “Rasto”. Verbo, palavra com a substância da vereda, do carreiro traçado somente com os passos da noite e do dia. “Em Janeiro” (isto é, no princípio, nos alicerces da memória que o texto constrói como raiz) “somos fragmentos negros azuis / ocultos mundos cintilantes e tranquilos / Violentos, tranquilos. // Na superfície da terra”. O espaço e o tempo suspendem a continuação da caminhada; parado, o sujeito que se constitui na escrita, suspende-se, para assim melhor contemplar, contemplar-se, construção que se volatiliza, pois faz parte de um domínio particular, “o ano de verbos e ventos”. Vento e palavra, o movimento e a música. O som que “cumpre o olhar”. O vestígio cada vez mais ténue, fazendo desaparecer as imagens da memória.
A memória inscrita no texto, de que restam apenas “vestígios” que ele resguarda, é, como o corpo e o ser, uma memória em dissolução. Ligada ao espaço, muito mais do que ao tempo, desaparece, transforma-se em “linguagem secreta”, como no poema “Jitterbug”: “Perdi uma das casas / da minha infância”. O próprio texto, na elipse de algumas frases, reflecte o espaço interior deixado incompleto com a substituição: “Pombos por sobre as árvores / onde é agora um hipermercado”. A memória é inseparável da sua dimensão de morte, de imagem longínqua; luta contra o indistinto, substantiva o espaço e o ser, individualiza; partilha, no entanto, da dimensão flutuante dos fragmentos – “A mãe […] ausentou-se / […] / e a sua memória flutua” –, é ela própria uma reunião caótica de fragmentos, de vestígios.
Escrever é, por isto, nesta poesia, a consciência da fragmentação, da dissolução. Movimento de viagem, traçando a própria estrada da viagem, o conjunto dos poemas tenta nomear, reconstruir o mundo (a memória não existe sem expressão), escrevendo “dissonâncias”, “linhas interseccionando-se quebradas abatidas”, num lugar do texto, misterioso, secreto, em que “se contemplam substantivos”, a substância escrita da vida e do mundo.

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